Era uma vez na América (1984)

Uma das grandes obras do diretor italiano Sergio Leone é Era uma vez na América, segundo filme do diretor da sua futura não completada trilogia “Era uma vez…” que objetivava explicar a sua visão sobre a América, sobretudo a ligada aos EUA. Não obstante observamos que as influências e as relações com as obras anteriores do diretor mantém certos traços de conexão em que é possível traçar alguns elementos que definem como o autor constrói as suas narrativas, seja pela sua decupagem minuciosa, seja pelos seus enquadramentos, ou seja pelos tempos de presença dos seus planos longos marcados por close-ups e travellings imersos em um profundo trabalho sonoro.

Se fosse possível tirar uma única essência, em temos metafóricos, de Era uma vez na América, a cerne estaria ligado ao tempo como chave da construção de uma identidade que está em sua própria cerne, vestindo uma mascará que se adapta à certos momentos, tal como um camaleão em um determinado espaço. Nesse aspecto somos levados pelas marcas temporais dos personagens a compreender como se passa o desenvolvimento e formação deles enquanto um grupo, e que aos poucos vai se perdendo a identidade do grupo imergindo no individual (esse fenômeno se passa em todas as obras de Leone), o tempo que percorre da infância à velhice levemente embalada pela sensibilidade da trilha de Ennio Morricone.

Nesse aspecto Leone no seu longa-metragem de quase quatro horas está retratando um grupo de mafiosos judeus que desenvolvem-se desde criança até se tornarem ricos empresários de Nova York, imersos em recheadas cenas com conflitos humanos e violência que são poetizadas por melodias que camuflam as passagens de tempo entre os planos ou ressaltam momentos dramáticos. Um desses momentos em que a música suaviza as transições de tempo é quando Noodles ao voltar no bar Fat Moe’s, por meio da observação das fotografias do seu passado até ir ao banheiro e olhando pela fresta do buraco – ocorre uma mudança de ritmo musical – que coloca o espectador no passado, onde Noodles (criança) está olhando Deborah (Jennifer Connelly) dançando. Além disso as trilhas sempre buscam ressaltar momentos de amizade, inocência das criança, a solidão tristeza e a violência.

Aliás a violência e individualidade estão no centro dos temas que rodeiam os filmes do diretor, tal como um plano pode estar para um contra plano – em termos figurativos de linguagem cinematográfica.

Pensando em filmes que também trabalham como o mesmo tema – máfia – pode-se notar que Leone tem uma forma diferenciada ao se relacionar com o construção dos seus personagens. Não temos aqui uma adoração e admiração dos seus personagens principais, ainda quando crianças, ou seja, não ocorre uma estima como acontece com Don Corleone no Poderoso Chefão (1972) de Francis Ford Coppola. Aqui o processo que se parece um vínculo positivo de identificação, logo vem uma quebra que nos demonstra novamente uma repulsão. Esse fenômeno é facilmente identificável na cena em que Noodles adulto está num jantar romântico com Deborah (Jennifer Connelly) com momentos belos e divertidos, mas quando Deborah recusa o pedido de casamento e Noodles fica em silêncio num plano longo, o que nos denota uma certa inflexibilidade dele, o que se segue é uma cena violenta de estupro. A máscara foi sacada e vemos aquele jovem mafioso na sua sagacidade e crueldade, um fenômeno que novamente nos coloca numa situação de desvinculo.

Evidentemente que Noodles representa a pureza e inocência de um personagem com características marcantes de lealdade e inocência assim com certa mistura de Clint Eastwood com Eli Wallach que representam o bom e o feio em Três homens em conflito (1966), um western spaghetti do diretor. E tal como ocorrem com esses dois personagens, não há possibilidade de ver uma natureza boa além dos momentos contemplativos relacionados a paixão e desejos que sempre chocam com a violência iminentes dos indivíduos do grupo. Essa manifestação da violência como cerne da cultura americana está presente em quase todas as obras do diretor. Na trilogia dos dólares a violência se manifesta na busca a todo custo pelo dinheiro, em Três homens em conflito, um dos filmes da trilogia, é evidente que o interesse individual está acima do coletivo na medida em que os personagens são confrontados a um duelo, que em tese apenas um sairá vivo. Em Era uma vez no oeste a motivação não é o dinheiro, mas a vingança e que – na maioria das vezes – é também um processo de natureza individual.

A base do filme é estruturada a partir da obra de Harry Grey (The Hoods). É visível uma obra de natureza complexa, ainda mais quando Leone opta por uma narrativa que não é linear, se apossando de elementos perturbadores e que confundem, em certa instancia, um expectador desatento ou no mínimo pontua várias indagações mentais sobre como se liga todos esses elementos às possíveis veracidades e sagacidade do diretor. Essa forma de montagem favorece o filme na medida em que evita a previsibilidade, que poderia ter a obra e cria um suspense que flutua numa rede de mistérios que prendem o expectador maravilhado pelas nuances de mudanças do tempo por meio de transições entre fotogramas suaves como um bom vinho tinto e incorporadas por atores com interpretações convincentes.

Uma cena que é apossado de elos marcantes de Leone é a que Noodles retorna ao bar após ver que Deborah realmente partiu. No que se sucede é uma sequência de eventos em silencio dos indivíduos marcado pela extremo incomodo que está sendo pelo ruído de Noodles mexendo com uma colher na sua xícara de café, ai temos vários close-ups dos rostos, expressões que figuram um conflito entre os amigos do grupo, essa sequência possui uma verossimilhança com a abertura de Era uma vez no oeste, em que os mesmo elementos de organização dos planos, sujeitos e dos momentos de silêncios são narrativos.  Menção ao interessante fato de Max (James Woods) estar sentado no trono do papa, que nos aponta uma das nuances do longa, é de que Max anseia e vai chegar ao poder, e que nesse auge, a escalada implicará apenas uma vaga, a qual James Woods já possui a qualificação.

Em termos de arquitetura fílmica é factível que podemos dividir a obra em quatro fases bem marcadas, que é uma característica de Sergio Leone nos seus outros filmes em que a primeira fase consiste na apresentação e localização dos personagens definindo quais são os seus interesses e ambições. Noodles é um personagem que busca a sobrevivência imerso nos desesperos de sua memória, preso a lealdade entre os amigos. Nesse aspecto é bem semelhante a apresentação que ocorre em Três homens em conflito na qual Tuco (Eli Wallach) está fugindo com uma carne na boca sobre ameaça de alguns pistoleiros.

Contudo enfatizo que no início do filme quando vemos Robert de Niro se drogando com ópio, é factível que possa ter nesse momento uma memória estruturada por uma conspiração da sua imaginação.

Na primeira fase tem se um personagem que foge buscando esconder-se dos mistérios presentes no seu passado. Na segunda fase envolve a consolidação da amizade na infância, os laços, as ligações, estilos e como se configuram o surgimento das relações de poder. Noodles criança (personagem incorporado por Scott Schutzman Tiler) é o líder e quem encabeça e planeja as ações do grupo.  Há uma dualidade entre ser criança e a busca da sobrevivência num mundo de adultos.

Uma das cenas mais tocantes dessa fase é a que um dos companheiros de Noodes descobre que a jovem Peggy (Julie Cohen) cobraria por sexo ou aceitaria um doce. O jovem Pasty vai até a porta do apartamento dela, anseia falar com Peggy, todavia a menina está tomando banho. Ele senta sobre a escada e temos ai um plano longo em que mostra o conflito entre ser criança e ser adulto. A beleza dos planos longos, sentir o tempo dos personagens por meio da dúvida dos seus desejos, comer o o doce ou deixar de ser criança. É fascinante como Leone consegue encantar através das suas composições e sensações que nos deixam sentir a sua leveza por meio da duração de um plano.

A terceira fase é a pós prisão de Noodles.  Os personagens adultos numa teia de relações com os seus espaços e interesses bem marcados, todavia com um pano que turva a visão na medida em que os elementos de construção estão se delineando e envolvendo em alguns conflitos, ameaças e perigos que vão circundando o grupo de amigos. Destaque no personagem Max (James Woods) em que vemos a variação das mudanças de um personagem instável para cada vez mais um sólido homem confiante e controlador.

Na quarta fase é evidente a marca do tempo, a velhice em que os mistérios e conflitos são apresentados e que uma das coisas mais solidas que se tem no grupo de amigos que era a amizade e lealdade são desarmadas, revelando a grande fragilidade e falsidade que mascarava a vida desses mafiosos. Diante dessa situação, a reação de Noodles ao não reagir a toda essa fúnebre descoberta e fazer aquilo que Max esperava – o assassinato – a reação de Noodles é a apenas de evocar a solidão e um sorriso imerso em ópio. A cena dos dois caminhando em direções opostas, num final repleto de ambiguidades de Sergio Leone, em que há possibilidade de suicídio, simbolizando a separação entre burguesia e os novos caminhos daqueles homens da escoria de Nova York, que se configuram em novos senhores capitalistas presos a memória.

Outra possibilidade é de que Noodles logo adiante mergulhado nos prazeres do ópio, possa estar apenas imaginando e possivelmente tentando justificar o seus próprios erros que levaram os amigos a morte, esse é um dos fascínios da obra fílmica desse diretor italiano, em que sentindo a memória não pode ser confundida com a imaginação ou mergulhado em um passado fatídico de um grupo de amigos mafiosos que cresceram juntos sobre uma triste farsa de James Woods ou Robert De Niro.

Em suma, diante das ambiguidades e montagem não linear em que passado, presente estão em um transito continuo, tudo o que podemos afirmar sobre as conclusões em Era uma vez na América são duas possibilidades,  em que uma caminha na justificação dos eventos que sucederam após a traição de Noodles por meio das ilusões causadas pelo uso de ópio em que projeta acontecimentos que nunca ocorreram. A outra poderia ser a evidencia, de que realmente Max traiu o grupo e que as relações e jogos foram realizadas de maneira maquiavélica. Com relação as outras obra de Sergio Leone é evidente a ligação de que os interesses individuais se sobrepõem aos interesses coletivos. Isso ocorre na trilogia dos dólares, em que a motivação é o dinheiro e no Era uma vez no oeste em que a ânsia principal é a vingança, já no seu último filme a busca é a escalada do poder. Leone de cobrador no seu próprio filme já nos demonstra que algo será cobrado dos personagens, ainda que o preço seja maior do que eles podem pagar e que a consciência possa permitir, mas que em nenhum momento glorificam a máfia, simplesmente há um desprezo por toda essa escória de bandidos que se configuram nos burgueses contemporâneos.